O velório
A tristeza se confundia com o ar solene do ambiente. Caras enrijecidas, homens para um lado, mulheres para outro, cochichos e muitos chorinhos. Uma criada servia bolinhos e os mais jovens ensaiavam descontrair–se. A viúva sempre amparada por familiares não deixara um só minuto o caixão. As quatro meninas ao seu lado pareciam ser as filhas do falecido. Pessoas não paravam de chegar, cumprimentavam–se lacônicas e respeitosamente. Todos muito distintos.
O defunto devia ser um homem importante. Eu digo devia por que eu mesmo não o conhecia. Minha distração era acompanhar velórios durante à tarde nos cemitérios da cidade. Gostava de ver as fisionomias daquela gente e sentir o profundo pesar da perda de um ente querido. Tudo aquilo me fazia refletir o real significado da existência e valorizar os pequenos momentos da vida. Minha imaginação corria solta – e era divertido fazê-lo – e pensava: Quem foi quem? Na vida daquele que partira desta para melhor.
Na sala ao lado havia outro corpo sendo velado e fiz uma visita. Era gente mais simples, choravam muito. Havia umas senhoras enrubescidas de tanto chorar, suas veias chegavam a saltar de seus pescoços. Deve ter sido um homem muito querido. Sim, era um homem, sua cara ainda estava descoberta e os amigos o acariciavam. A viúva, no canto da sala, quietinha com os olhos vermelhos, desconsolada. Muitos oravam em voz alta e outros se abraçavam.
Uma mulher jovem e bonita, com um vestido preto decotado, permanecia impassível junto ao corpo. Repentinamente atirou-se por cima do caixão aos prantos a ponto de ter de ser arrancada pelos familiares presentes. Cogitei mesmo se a tal mulher não seria amante do falecido.
A tarde transcorrera normalmente, como era de praxe em ocasiões como essas, quando um senhor se aproximou do corpo e começou a sussurrar baixinho. Ele acariciava sua testa e, com muito carinho, fez como se guardasse algo, que não pude ver bem o que era, no bolso do paletó do falecido. Eu não me aguentei e só pensava em descobrir o que aquele gentil senhor dera ao defunto.
Com um ar meio desinteressado dei uma volta pela sala. Todos estavam tão compenetrados em tamanha tristeza que seria fácil dar uma espiada no bolso do morto.
O problema é que o caixão jamais permanecia sozinho. Volta e meia surgia alguém para se despedir do falecido. Pude reparar também que o tal senhor (que colocara algo no bolso do defunto) estava acompanhado de um grupo de homens sisudos junto ao caixão. Pareciam vigiá-lo. E aquilo tudo me intrigava.
Aproximei-me do grupo, como quem não quer nada, e ouvi algo do tipo: Então? Conseguiu? Livrou-se dela? Livrou-se do quê? Pensei. Da muamba? Será que eles estavam tentando esconder algo no caixão? Discretamente, coçando a orelha, olhando pro chão, com passos curtos fui em direção ao corpo e ali fiquei em complacência com o morto. Uma senhora se dirigiu a mim:
– Você o conhecia? – Eu, meio de supetão, hesitei.
– Bem, um pouco… Não éramos muito próximos.
– Ah! Ele era um homem tão bondoso, uma saúde de ferro, foi uma fatalidade.
– Sim, pois foi.
E enquanto a senhora discursava em prol da bondade do falecido, eu endireitava o cravo preso em sua lapela, e com muita destreza, sem que ninguém notasse, meti minha mão no bolso de seu paletó e perto de descobrir enfim o que ali havia, chegaram os funcionários do cemitério.
Em meio a choros e suspiros com muita pressa e sem gentileza alguma, taparam o caixão. Por um triz, desvencilhei minha mão. E atônito os segui até o pátio. Os senhores sisudos cumprimentaram a viúva. Eles a conheciam. A cerimônia começara. Todos cabisbaixo e eu roendo as unhas.
Estava mais nervoso do que a própria viúva. Os homens de paletó e gravata me encaravam; será que eles sabiam que eu sabia o que eles já sabiam? O caixão, agora, fechado, ali na minha frente e para minha aflição, não havia modo de abrí-lo de novo. Depois do sermão do padre o corpo foi enterrado. Lágrimas escorreram do meu rosto como se eu perdesse um amigo. A mão sobre a testa enxugava o suor frio. Fui para casa desconsolado sem saber o que aquele gentil senhor guardara no bolso do paletó do falecido.
Um conto de Marcelo Candido Madeira
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